O Mito de Lilith: Um Modelo do Feminino Para a Sociedade Contemporânea.

Antonio Maspoli de Araújo Gomes1

Vanessa Ponstinnicoff de Almeida2

1. Introdução

A mulher do século XXI conquistou sua liberdade e sua igualdade jurídica perante a comunidade dos homens, contudo, a figura feminina continua envolta em uma bruma de mitos e de ignorância sobre seus papeis sociais. O papel que a mulher ocupa na sociedade atual demonstra claramente as conseqüências deste fato construído historicamente e que estabelece as normas que orientam sua posição no círculo social. Compreender essa dinâmica ao longo do tempo é essencial para que se identifiquem os fatores que interferem na imagem feminina e em suas possibilidades de alcance nos mais variados setores da sociedade. A mulher contemporânea é mãe, profissional, esposa e ainda deve encontrar tempo para cuidar de si.

Nesse sentido, o presente estudo se propõe a compreender alguns aspectos do inconsciente e suas relações com o mito de Lilith a partir da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung. Pretende-se ainda demonstrar as relações possíveis entre o mito de Lilith e o lado obscuro da alma da mulher e sua integração na sociedade contemporânea. Por último esta pesquisa busca demonstrar como um mito pagão, pré-cristão, vem servindo de referência para a construção das novas imagens femininas em seus novos papeis sociais.

1 Teólogo e psicólogo jungiano. Doutor em Ciências da Religião pela UMESP. Pos doutor em História das Idéias pelo IEA da USP. Membro do Laboratório de Psicologia Social Estudos da Religião da USP. Professor do Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie e Fundador da Escola Superior de Teologia desta Universidade.

2 Psicóloga Clínica formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e aluna do curso de Especialização em Psicologia Clínica Junguiana pelo Instituto Sedes Sapientae – CRP N. 06/ 85252.

2. A Psicologia Analítica e Suas Relações Com os Mitos

Pode-se afirmar que a díade masculino-feminino é universal, considerando que as questões de gênero sempre se destacaram nos mais variados estudos em toda a comunidade científica. No que diz respeito às questões psicológicas e à realidade da vida cotidiana, nota-se que grande parte dos objetos são vivenciados em pares de opostos que formam dualidades, tais como inconsciente-consciente, luz-trevas e, neste caso, masculino-feminino.

A sociedade contemporânea tem buscado novos símbolos para compreender as ralações entre o homem e a mulher. Como exemplo, Withmont (2004) cita os antigos conceitos chineses de Yang e Yin, os quais incluem masculinidade e feminilidade, respectivamente, como princípios gerais ou imagens simbólicas. No entanto, o autor lembra que o uso desses símbolos não deve ser confundido com as características sexuais dos homens ou das mulheres. Ou seja, tais princípios básicos são representações puramente simbólicas das energias presentes na natureza que incluem aquilo que comumente se chama de masculinidade e feminilidade.

Na filosofia chinesa, o princípio Yang é representado como elemento criador, gerador, ou ainda energia iniciadora. Simboliza a experiência da energia em seus aspectos de força, impulsividade, agressividade e rebelião. O princípio Yin, por sua vez, é representado como receptivo, dócil, retraído, frio, úmido, escuro, concreto, envolvente, continente, centrípeto, iniciador, os anseios e instintos, a escuridão e o espaço, o negativo, indiferenciado e coletivo.

O autor continua, dizendo que a expressão associada ao princípio Yang é o da ordem, compreensão, iniciativa, separação e consciência, uma vez que tal princípio oferece caracterização manifesta para a orientação consciente no homem e, paradoxalmente aos traços inconscientes na mulher. Já a orientação manifesta ou consciente na mulher, seu Yin, é tido como muito mais enigmático que o princípio do Yang. Trobisch(1979) sintetizou estes princípios quando descreve uma cosmogonia indiana sobre a criação do homem e da mulher:

Conta-se, na Índia, esta lenda sobre a criação do homem e da mulher:

Quando acabou de criar o homem, o Criador reparou que tinha usado todos os elementos concretos. Nada mais havia de sólido, maciço ou duro para criar a mulher.

Depois de pensar muito tempo o Criador tomou a redondeza da lua, a flexibilidade da trepadeira e o farfalhar da grama,

a finura da cana e o desabrochar das flores, a leveza das folhas e a serenidade dos raios do sol,

as lágrimas das nuvens e a instabilidade do vento,

a timidez dum coelho e a vaidade dum pavão,

a maciez da penugem dum pássaro e a dureza dum diamante,a doçura do mel e a crueldade dum tigre,

o crepitar do fogo e o frio da neve,

a tagarelice dum papagaio e o cantar dum rouxinol!

A astúcia duma raposa e a fidelidade duma leoa.

Misturando todos esses elementos não sólidos, o Criador fez a mulher e a deu ao homem.” (p. 5-6)

Em termos de sociedade, de maneira mais ampla, nota-se que a produção social da supremacia do masculino pelo feminino é histórica e culminou com a construção de uma estrutura social patriarcal e paternalista que, indiscutivelmente, vem sofrendo profundas transformações nas últimas décadas. Por esse motivo, é fundamental que se produzam reflexões acerca do papel da mulher e da importância do princípio feminino na sociedade, a fim de se compreender as possíveis influências desse aspecto nas relações interpessoais e na sociedade atual.

Antes de qualquer afirmação, é importante ressaltar que em algumas referências à Psicologia analítica no Brasil, tanto sobre a vida, quanto sobre a obra de Jung, as primeiras traduções de obras sobre psicologia da religião deste autor, podem ter distorcido a imagem deste psicólogo contribuindo para apresentá-lo como um místico. Comparada à Psicanálise Freudiana, cujos conceitos seriam estruturados em objetos comprováveis, tais como a sexualidade e as pulsões, a psicologia analítica lidaria com conceitos alicerçados na recorrência de representações culturais. Para os críticos da metapsicologia junguiana, nada garantiria que os arquétipos e o inconsciente coletivo, por exemplo, tivessem causa psicológica empiricamente demonstrável.

Nessa perspectiva, apesar das contestações dirigidas à psicologia analítica, vários teóricos, junguianos e não jungianos, acreditam que o desenvolvimento da neurociência, a nova ciência da mente, como a denominou Gardner,(1996;2000) nos últimos anos, possibilitará a compreensão das bases neurológicas do funcionamento arquetípico, além da leitura da obra de Jung por outra ótica mais próxima da objetividade científica.

Assim, na base da visão junguiana da Psique encontra-se a idéia de uma interação de fenômenos somáticos, intrapsíquicos e pessoais na vida de cada ser humano. Jung referia-se a esses elementos vivos e indissociáveis como oriundos de um unus mundus, termo emprestado da filosofia oriental que significa um mundo uno, ou seja, unidade original não diferenciada. Como exemplifica Salman (apud Eisendrath & Dawson, 2002), as descobertas recentes sobre o DNA refletem esse tema: toda a vida animada, de uma folha vegetal a um ser humano, é formada dos mesmos componentes de material genético, diferindo-se apenas em sua combinação.

Nesse mesmo trabalho, nota-se a afirmação de Jung que apesar do mundo do sujeito e do objeto, consciente e inconsciente, tenha sido dividido em nome da adaptação, estes deveriam ser reunidos em nome da saúde, o que para Jung significava a totalidade da psiquê, ou seja, ao Si-mesmoself (toda a psique). Para ele, a análise deveria ajudar o paciente em seu processo de individuação, a tornar-se ele mesmo, em toda sua potencialidade. Portanto, no processo psicológico, os relacionamentos sujeito-objeto, consciente-inconsciente podem e devem ser re-integrados em um todo subjetivamente significativo. Em outras palavras, o objetivo da análise é facilitar o processo de reconciliação com o inconsciente, bem como o de acompanhar o paciente no aprendizado de suas dificuldades atuais e futuras.

Em contraposição à Psicanálise, Jung (1976) afirma que o conceito freudiano de inconsciente limitava-se a designar o estado dos conteúdos reprimidos ou esquecidos, ou seja, ele nada mais é do que o espaço de concentração desses aspectos recalcados. Para Freud, o pai da psicanálise, tal instância psíquica é de natureza unicamente pessoal, (apesar de ter discernido formas de pensamento arcaico-mitológicas inconscientes tal como o conceito de Complexo de Édipo, pedra angular da teoria psicanalítica, considerado pelo próprio Freud um arquétipo universal).

Jung, por sua vez, postula que uma camada mais ou menos superficial do inconsciente, mais próxima da consciência, é indubitavelmente, de natureza própria, denominando-a Inconsciente Pessoal. Contudo, este repousa sobre uma camada mais profunda que já tem sua origem em experiências ou aquisições pessoais anteriores, sendo, portanto, inata. Tal instância, Jung chamou de Inconsciente Coletivo, uma estrutura psicológica de natureza universal. Segundo ele, essa esfera psíquica possui conteúdos e modos de comportamento que são comuns a todos os indivíduos.

Jung (1940) explica que os conteúdos do inconsciente coletivo são os arquétipos, que seriam possibilidades psicológicas transmitidas geneticamente, através da cultura, desde os tempos primordiais, podendo ou não ser percebida pelo conhecimento consciente. Os arquétipos são, portanto, representações coletivas que fazem referências às vivências típicas primitivas que serviram de substrato para a construção dos mitos, ritos, fábulas e até mesmo da arte e da religião.

Para Jung (1920), na mesma proporção que os seres humanos são similarmente diferenciados, as correspondentes funções mentais são coletivas e universais. Essas circunstâncias explicam o fato de que as produções de povos e raças situados a grandes distâncias uns dos outros possui uma série notável de pontos de concordância.

Ramos e Machado (2005) acrescentam que a forma como cada um enfrenta as dificuldades e os desafios do cotidiano, revela em grande parte aspectos do seu Si-mesmo. Isso é mais um aspecto indicador de que o inconsciente para Jung é uma fonte de criatividade e potencialidade e não apenas um depositário dos conteúdos reprimidos, de imagens e vivências dolorosas cercadas pelos mecanismos de defesa do Ego. Do inconsciente surgem os impulsos que tomam forma, de acordo com o espaço, o tempo e a cultura de uma pessoa.

O conceito junguiano de arquétipo explica o aspecto universal dos padrões de comportamento humano, tal como o esqueleto que estrutura e dá base ao corpo. Embora tenha a mesma autonomia e fisiologia, não há seres idênticos. Dessa forma, a maneira como cada pessoa atualiza os arquétipos depende de suas vivências pessoais, educacionais e socioculturais. Em cada época, os arquétipos mudam a roupagem como se apresentam, contudo sua estrutura e dinamismo básico permaneçem.

O conteúdo psíquico de natureza masculina da psique da mulher, que aparece no inconsciente feminino é o animus. Seu oposto, a anima, é o arquétipo compensador da psique masculina e simboliza a estrutura psicológica inconsciente da psique do homem.

O fator determinante das projeções da anima, isto é, o inconsciente representado pela anima, onde quer que se manifeste: nos sonhos nas visões e fantasias, ela aparece personificada, mostrando-se deste modo que o fator subjacente a ela, possui todas as qualidades características de um ser feminino. Não se trata de uma invenção da consciência, é uma produção espontânea do inconsciente. Também não se trata de uma figura substitutiva da mãe, pelo contrário: temos a impressão de que as qualidades numinosas que tornam a imagem materna tão poderosa originam-se do arquétipo coletivo da anima que emerge de novo em cada criança do sexo masculino.” Jung (1976, pág. 11).

Neste sentido, de acordo com Whitmont (2004), o medo da anima conduziu histórica e coletivamente à degradação da mulher. Hoje, esse medo se exprime na masculinização do mundo e na depreciação do feminino que é exclusivamente definido em termos de maternidade e serviços domésticos e, portanto, no declínio da verdadeira auto-estima da mulher enquanto mulher, e não como imitadora do funcionamento do homem. De acordo com o autor, o fracasso para integrar culturalmente o mundo feminino conduziu à difundida rigidez das atitudes mentais dogmáticas abstratas, resultando na sociedade atual: estéril, dissociada do sentimento, do instinto e extremamente racionalista. Apesar disso, a psique objetiva compensa coletivamente esse estado de coisas com invasões compulsivas da anima que ocorrem em todas as expressões da psicologia e das psicoses de massas que surgem inexplicavelmente a todo instante nesse mundo auto-denominado moderno.

Nessa perspectiva, surge a seguinte questão: Como os arquétipos, tais como a anima e o animus, vindos do inconsciente coletivo, se comunicam com a percepção consciente? Já foi explicitado que para Jung (apud Ramos e Machado, 2005) essa relação se dá através dos símbolos. De acordo com a etimologia: sym significa juntar, unir; e balein refere-se a algo em direção a uma meta, um objetivo. Assim, symbalein significava, na antiga Grécia, o ato de unir duas metades de uma moeda, partida na separação de duas pessoas. Quando uma delas desejava enviar uma mensagem importante à outra, o mensageiro trazia consigo uma das metades da moeda. Dessa forma, o destinatário poderia verificar a sua autenticidade ao constatar a perfeita união das duas metades: uma conhecida e outra, incógnita. Pode-se afirmar que a anima e o animus no inconsciente coletivo representam os dois lados de um todo ontológico indivisível na expressão de Gênesis 1:27:

Deus criou o homem à sua imagem,

À imagem de Deus ele o criou,

Homem e mulher os criou.”

Jung (1998) então estabelece uma ponte entre arquétipo e mito. Segundo ele, já se levantaram muitas objeções contra a concepção de que o último simboliza fatos psicológicos. Dessa forma, há uma grande dificuldade das pessoas assumirem que os mitos são, de certa forma, alegorias explicativas de processos naturais.Os mitos são representações simbólicas e pictóricas dos arquétipos. Nesse sentido, o mito não busca estabelecer relações científicas, mas apenas guardar uma verdade psicológica a ser transmitida de geração em geração. Além disso, sua estrutura é semelhante a fábula onírica, na qual o real e o imaginário fundem-se na construção de uma imagem fantástica e fantasmática capaz de ser lembrada e atualizada pelo sonhador.

Assim, o sonho é a fonte conhecida de representação mitológica costumeira, o qual descreve uma situação em termos de verdade e de realidade psíquica interiores. O mito, portanto, segue essa mesma lei. Coomaraswamy (apud Withmont, 2004), coloca que a narrativa mítica tem uma validade que ultrapassa o tempo e o espaço, e é verdadeira em todo momento e em todo lugar. Ademais, é exatamente por sua universalidade que ele pode ser narrado, com igual autoridade, de vários pontos de vista diferentes. Emma Brunner-Traut (apud Withmont, 2004, pág. 70):

Enquanto a natureza do julgamento racional exige que o homem forneça seu próprio sistema de referência, seu conjunto de condições para o questionamento das coisas, no mito, os objetos têm sua própria relação interna um com o outro; eles se encontram e interagem em um mundo próprio, oculto e desatento em relação ao questionador. Eles são suficientes e harmonizados entre si, assim constituindo sua própria verdade na dimensão do infinito. (…) Ele (o mito) é colocado sob a luz da dúvida, da crítica e da exigência de prova, e sob essa luz ele parece falso. O mito não é definição nem prova. Ele é evidente por si mesmo. (…) aquilo que não pode ser entendido pelo intelecto luta para obter a sua realização no símbolo, no signo mítico e no próprio mito”.

Encontra-se no dicionário de símbolos de Chevalier (2005), que na interpretação ético-psicológica, as figuras mais significativas da mitologia grega, em particular, representam uma função da psique. Além disso, as relações que elas exprimem à vida psíquica dos homens, divididas entre as tendências opostas vão da sublimação à perversão. Tal corrente permite, em linhas gerais, a realização de uma dramaturgia da vida interior. Outras interpretações vêem nos mitos uma representação da vida passada dos povos, com sua história, os heróis e suas façanhas. O mito seria uma dramaturgia da vida social ou da história poetizada.

Já para alguns filósofos, tais como Platão, sejam quais forem os sistemas de interpretação, os mitos ajudam a perceber uma dimensão da realidade humana e trazem à tona uma função simbolizadora da imaginação. Esta não pretende transmitir a verdade científica, mas expressar a verdade de certas percepções.

Vernant (2002) também discorre sobre esse assunto. Para ele, quando se trata de ‘mitologia grega’, o que vem à mente é um conjunto de narrativas que falam de deuses e heróis, os seja, dois tipos de personagens que as cidades antigas cultuavam. Segundo ele, os mitos não são verdades absolutas impostas, mas relatos aceitos, entendidos e sentidos como tais desde os tempos mais remotos. A origem da palavra, mythos, remete a dimensão do que é fictício, uma oposição à ordem do real de um lado e a demonstração argumentada do outro, a fábula.

De acordo com Withmont (2004), o mundo do mito tem suas próprias leis e sua própria realidade. Segundo ele, muitas vezes o mito é rejeitado como sendo algo inventado ou inverídico como uma tentativa primitiva, pseudocientífica de racionalizar fatos astronômicos, sazonais, sexuais ou históricos. Em linguagem corriqueira, o mito carrega o significado de algo inverídico, ou seja, se tomado de modo literal, o mito certamente não é verdadeiro. A forma como se pode entendê-lo refere-se ao que Jung chamou de verdade psíquica ou aquela descrição simbólica da dinâmica e da vivência psíquica. Em outras palavras, a verdade do mito é apenas acessível sob a ótica simbólica.

Em suma, os mitos e os arquétipos, bem como as forças impulsionadoras que eles representam, não são construtivos nem destrutivos por si só. De acordo com Withmont (2004), eles podem ser ambos, dependendo do modo como se integram na vida da comunidade ou do indivíduo e do modo como são vividos em termos do aqui e agora. Se estão conscientemente relacionados e reconciliados com as exigências éticas, eles serão construtivos, porque são os elementos através dos quais a vida recebe o seu impulso.

É exatamente esse o propósito desse estudo, o de relacionar o mito de Lilith e a estrutura psicológica e simbólica que ele representa como base para se compreender a contribuição deste, para a conseqüente integração de alguns aspectos do feminino na sociedade atual. Através do entendimento da repressão de algumas estruturas do feminino, desde os tempos primordiais de que trata tal mito, espera-se despertar no leitor uma visão mais crítica a respeito de uma sociedade de base patriarcal. Sociedade esta que promoveu a distorção do papel social da mulher e que, evidentemente tem sofrido transformações drásticas nas últimas décadas.

Após essas considerações sobre alguns aspectos da teoria analítica, cabe aqui a descrição do mito de Lilith e sua utilização por grupos femininos como base para a construção dos novos papéis sociais que vem sendo conquistados e construídos pela mulher na sociedade ocidental.

3. O Mito de Lilith e sua Importância na Compreensão da Psique Feminina Ocidental

A narrativa do mito de Lilith nunca foi considerada como canônica pelos Pais da Igreja pertencendo a chamada Literatura Apócrifa ou deuterocanônica. O mito de Lilith pertence à tradição rabínica de transmissão oral, cujos ensinos encontram-se reunidos nos textos da sabedoria rabínica, segundo esta tradição, no Talmud ( Hurwitz, 2006, p. 85-89). A alta crítica de caráter liberal considerou estes escritos como pertencendo a chamada produção jeovística, que precede de alguns séculos, a versão canônica sacerdotal. Esta versão é contestada pela igreja católica e protestante.

O alfabeto de Ben Sirak( Koltuv, 1986,p.37-52) é o registro mais antigo que se conhece sobre Lilith. Neste manuscrito, datado entre os séculos VIII e X a.C., ela é descrita como tendo sido a primeira esposa mítica de Adão. Liliht é desconhecida do cristianismo primitivo embora tenha aparecido nos primeiros séculos da era cristã. Mais recentemente, contudo, Lilith fecundou o imaginário da comunidade judaica e cristã com idéias sobre um demônio feminino que provocava a polução noturna nos jovens castos e ainda era a responsável pela morte prematura de crianças recém nascidas. Lilith também aparece no Zohar( Koltuv, 1986,p.17-35) o livro do Esplendor, uma obra cabalística do século XIII que se constitui no mais influente texto hassídico. Ela aparece também no Talmude, o livro da tradição judaica. No Zohar, Lilith era descrita como um sucubus. As poluções, com emissões noturnas, eram citadas como um sinal visível de sua presença, isto é da união carnal do homem com Lilith. (Engelhard,1997, pp. 32-33).

Ademais, o mito de Lilith( Hurwitz, 2006, p. 85-89) povoou o imaginário sumério babilônico antes dos tempos bíblicos e habita atualmente a subjetividade dos movimentos sociais ligados a libertação da mulher especialmente aqueles ligados aos movimentos feministas e de gênero A palavra, que aparece em Isaias 34:14: “Os gatos selvagens conviverão aí com as hienas, os sátiros chamarão os seus companheiros. Ali descansará Lilith, e achará um pouso para si”. Em português foi traduzida por lâmias, fantasmas e às vezes Lilith. No hebraico é derivado do aramaico lilitu que na Babilônia e na Assíria significa demônio feminino. A etimologia judaica derivou Lilith do aramáico layil, que significa ‘noite,’ a lua ‘negra’ correspondente a a lâmia grega.

Sicuteri (1985) fez uma pesquisa sobre as origens do mito de Lilith e sua integração na subjetividade feminina contemporânea. Estees autor concorda que Lilith apareceu nas tradições orais, reunidas nos textos da sabedoria rabínica oriundos do Zohar que são escritos sumérios e acadianos. Lilith é um mito arcaico que segundo a mitologia rabínica, de tradição oral, antecede a narrativa mosaica e canônica da criação de Eva. Segundo esta narrativa mítica, ao contrario de Eva que foi criada por Deus da costela de Adão,( segundo a narrativa de Gênesis), Lilith, de acordo com Hermínio, foi feita do barro, à noite. Lilith tinha em sua aparência obscura sangue, saliva e lágrimas. R. Jehudah em nome do Rabi disse: “No principio a criou, mas quando o homem a viu cheia de saliva e sangue afastou-se dela: tornou a criá-la uma segunda vez, como está escrito: Desta vez, esta e aquela , da primeira vez” ( Scuteri, pp. 142).

Lilith teria sido criada tão bonita e interessante que logo arranjou problemas como primeiro o homem. Ainda segundo a narrativa mítica, Eva foi criada para substituir Lilith. Eva seria o oposto de Lilith, por sua vez, reúne traços marcantes de obediência, boa imagem, companheira, submissa ao Sacerdote, ao Pai e à Lei e por fim, também fonte de pecado e desobediência.

Segundo o mito, as relações entre Adão e Lilith foram marcadas pela emergência pela paixão capaz de dominar Adão e fazê-lo perder a razão e entregar-se a luxuria. Acredita-se que a sedução produzida por ela o fazia afastar-se de seus compromissos com a divindade. A tradiçãon oral das versões aramaicas e judaicas afirmam que a relação entre os dois era perturbadora. Os conflitos entre Lilith e o primeiro homem decorriam da atitude desta contra a submissão que lhe fora imposta pela comunidade patriarcal. Diante da recusa de Adão ao pedido de Lilith por igualdade, inclusive durante as relações sexuais, ela é expulsa da comunidade dos homens e recebe como punição o exílio no Mar Vermelho e sua transformação num demônio feminino.

Em outras narrativas míticas, Lilith é aquela mulher que ataca os homens durante os sonhos e fantasias eróticas. Ela invade seus sonhos e mantém relações sexuais com estes desnorteando-os. As relações do homem com Lilith são sempre marcadas pela perversão, confusão mental, culpa, depressão, psicose e destruição. Atribui-se a Lilith também a morte prematura de crianças recém nascidas.

Em outras palavras, Lilith é marcada pelo seu desejo de liberdade, de autodeterminação, espontaneidade no modo de agir, de escolher e decidir, ou seja, quer os mesmos direitos do homem. Sua constatação de que a sociedade patriarcal não lhe concederia status igual, coloca a rebeldia como única alternativa para conseguir este desiderato. Lilith se rebelou e, decidida a não submeter-se ao homem e, a odiá-lo como igual, resolveu abandoná-lo.

Abandonado por ela o homem sente a dor da rejeição. Entorpecido por um sono profundo, amedrontado pelas trevas da noite, ele sente o fim de todas as coisas boas. Ao despertar, ele procura por Lilith e não a encontra, pois havia sido exilada no Mar Vermelho, onde habitam os demônios e espíritos malignos, segundo a tradição hebraica. É este caráter maligno de Lilith que a levou a enfrentar e contrariar o homem e a questionar o poder do macho sobre a fêmea.

A tradição oral afirma que Adão queixou-se a Deus sobre a fuga de Lilith e, para compensar a tristeza dele, Deus resolveu criar Eva, moldada exatamente para as exigências da sociedade patriarcal. Eva, segundo a narrativa Bíblica foi criada por Deus a partir da costela de Adão. É o arquétipo, modelo feminino, segundo a tradição judaica-cristã. Eva é aquela mulher submissa e devotada ao lar. Assim, enquanto Lilith é força destrutiva (o Talmude diz que ela foi criada com a imundície da terra e do lodo), Eva é construtiva e Mãe de toda Humanidade (ela foi criada da carne e do sangue de Adão) segundo Gen. 2: 1-21.

O ideal de uma mulher submissa domina o imaginário cristão na sociedade católica brasileira. Este desejo de submissão da mulher ao homem pode ser bem exemplificada pela síndrome de Amélia do poema Ai Que Saudades Da Amélia da lavra de Ataulpho Alves e Mário Lag. Poema este cantado, dentre outros, por Roberto Carlos:

Nunca vi fazer tanta exigência
Nem fazer o que você me faz
Você não sabe o que é consciência
Nem vê que eu sou um pobre rapaz
Você só pensa em luxo e riqueza
Tudo que você vê você quer
Ai, meu Deus, que saudade da Amélia
Aquilo sim é que era mulher
Às vezes passava fome ao meu lado
E achava bonito não ter o que comer
E quando me via contrariado
Dizia: Meu filho, que se há de fazer
Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia é que era mulher de verdade
Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia é que era mulher de verdade
Às vezes passava fome ao meu lado
E achava bonito não ter o que comer
E quando me via contrariado
Dizia: Meu filho, que se há de fazer
Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia é que era mulher de verdade
Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia é que era mulher de verdade.
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Relacionando esse mito à psicologia analítica, pode-se afirmar que ele carrega em sua estrutura onírica uma verdade puramente psicológica. No caso de Lilith o mito refere-se a uma figura arquetípica feminina: o lado negativo da anima, cujo caráter de arquétipo assegura seu aspecto primitivo. Lilith é a mulher em estado natural, antes de sofrer as transformações impostas pela cultura. Neste estado a mulher recusa-se a submeter-se ao homem seja no ato sexual, seja nas relações entre os sexos na vida cotidiana. Lilith, portanto, se reconhece como igual ao homem, não admitindo nenhuma hierarquia nem biológica, nem social. É sua igual e espera ser tratada assim pelo varão.

Na consciência individual e coletiva, Lilith – a sombra feminina – tem sofrido, por essa repressão cultural, primeiramente a tentativa de ser suprimida ou expulsa. E a mulher, como a forma mais adequada a conter a projeção desta essência, torna-se um grande perigo. É a partir deste princípio que, na Idade Média, surge a Inquisição, a caça as bruxas, ou melhor às mulheres e aqueles homens que, com elas se relacionavam com compreensão e proximidade, porque se partia da premissa da convicção bíblica de que a mulher é condenada. Daí, surgirá em 1489, um livro escrito por Heinrich Kramer e James Sprenger, intitulado Malleus Maleficarum, que tinha por objetivo, ser o guia dos inquisidores na busca às incorporações do diabo e que Roberto Scuteri tão bem denomina como “ o incrível texto de psicopatologia sexual masculina. (Scuteri, 1985, pp.113 spud Engelhard,1997. pp. 37).

No tribunal do Santo Ofício, os inquisidores consideravam como bruxa toda mulher que demonstrasse algum tipo de rebeldia contra a ordem patriarcal. A rebeldia era o primeiro sinal de bruxaria. Se a mulher fosse ruiva, o inquisidor não tinha mais dúvida que estava realmente diante de uma bruxa. O julgamento era precedido de torturas e durante o julgamento a mulher era torturada in extremis até confessar suas relações com o demônio. Quando esta confissão ocorria os inquisidores aumentavam as torturas até que a mulher confessasse que mantivera relações sexuais com o demônio. Estas supostas relações sexuais eram descritas com riquezas de detalhes eróticos o que transformava o tribunal do Santo Oficio numa orgia sadomasoquista.

A punição de Lilith, por outro lado, reside no seu banimento da comunidade dos homens: no isolamento social e na solidão. Ela deve sofrer as conseqüências dos seus atos sozinha no deserto. Deve ainda atormentar com sua sensualidade e seu erotismo o sonho casto do santo, daquele que busca ter um coração puro. Nisto consiste a sua maldição. Ela agora não é apenas excluída, é temida. E pela força da sua sensualidade é também desejada. A relação de Lilith com o sexo oposto é marcada pela ambivalência: amor e ódio, atração e repulsão, medo e desejo, prazer e destruição.

Toda a experiência de angústia, que combina opressão, terror, pânico, ânsia, susto, respiração ofegante, frenesi, é a terrível presença de Lilith, que também provoca, com sua força sexual psíquica, orgasmos desenfreados, desejos promíscuos. Porém, logo em seguida, sobrevém grande melancolia, profundo mal estar, sensação de peso e profunda depressão, sentimento de insegurança e desconfiança, com choros súbitos e dores de cabeça, além de moleza nos membros inferiores.” (Engelhard, 1997. pp. 40).

Em termos psicológicos, a punição de Lilith representou o recalque dos instintos mais primitivos da natureza feminina: a agressividade e a sensualidade. A repressão destes instintos produziu como conseqüência a supressão da liberdade e da espiritualidade da mulher na cultura patriarcal. Esta repressão gerou uma relação de dependência subordinando os desejos da mulher aos interesses do homem. No entanto, Lilith nunca esteve de todo ausente da comunidade dos homens. Ela reapareceu primeiro nos sonhos e fantasias eróticas e posteriormente através da prostituição sagrada e de outras formas de prostituição. Contudo, sua presença sempre foi punida severamente pela sociedade. A repressão dos atributos femininos presente no mito de Lilith produziu como conseqüência o ideal ascético de mulher assexuada cuja destinação primordial era a procriação de filhos para servir de mão de obra nas sociedades agro-pastoris e industriais.

A identificação do sentimento e da intuição como formas essencialmente femininas produziu também a repressão destes aspectos no homem. A este só restou a razão e emoção. Após a década de 1960 a psicologia voltou-se para o estudo destes atributos e para a realização de workshops, especialmente no mundo dos negócios, tentando despertar estes fatores no homem. A integração do sentimento e da intuição na alma masculina pode levá-lo a melhor compreender a mulher e a própria natureza.

Nos cultos afro-brasileiros a figura de Liliht irá emergir no Candomblé, Lilith aparece através de uma entidade chamada Pomba Gira, que seria o lado feminino do Exu. A ambigüidade de Exu permite que os praticantes deste culto se utilizem de seu aspecto feminino através desta entidade para representar a participação da mulher neste culto. Esta entidade geralmente incorpora-se em mulheres e sua presença caracteriza-se pela emergência da sexualidade e da sensualidade de forma exacerbada. A mulher incorporada, se transforma, torna-se a mulher fatal, aquela desejada pelos homens, capaz de seduzi-los e dominá-los. Existe dentro do próprio Candomblé uma controvérsia sobre os aspectos paradoxais da personalidade desta entidade no que tange a moralidade.

As Pombas Giras que segundo a tradição são entidades que, em tempos remotos, viveram entre os seres humanos. Em épocas medievais foram maciçamente discriminadas, não por possuírem poderes excepcionais, mas apenas por serem mulheres de beleza formidável. Consideradas diferentes pela sociedade, sofreram preconceitos extremos a ponto de torná-las escravas da luxúria dos nobres. Oprimidas e humilhadas eram obrigadas a sufocar seus sonhos e desejos mais íntimos, vivendo às escondidas com o coração cheio de amor para amar. (…) Depois de velhas e usadas morriam em condições desumanas, culminando com a época de caça às bruxas. Nesse contexto surge uma poderosa bruxa em um corpo jovem que todo nobre desejaria possuir, e com seu poder de transformação fundou uma sociedade chamada Mulheres de Cabaré e Damas da Noite. Nessa sociedade as amantes passaram a se reunir e receber os homens para o prazer, com liberdade e condições de aprender magia, encantos, feitiços e simpatias, no intuito de conseguir o que desejavam dos homens. Porém, ainda assim, padeciam sem realizar seus sonhos.(P. 1)”2

      
A Pomba Gira é o espectro de mulher fatal: agressiva e sexualmente promiscua. Por outro lado, nos cultos afro-brasileiros é ao mesmo tempo, desejada. Segundo Fernando Khouri:

Para o candomblé tradicional, Pomba – Gira não é nada além de um espírito que desencarnou, levando para o “além túmulo” seus vícios e putrefação moral, adquiridos durante sua estada em nosso planeta.

Pomba – Gira é uma invenção carioca, uma versão pornográfica, segundo a antropóloga Monique Augras, do culto das “Iyá Mi”(p.1).

De maneira geral, Lilith representa então, o ápice da repressão dos aspectos obscuros e negativos da personalidade da mulher na cultura patriarcal do ocidente e do oriente. A repressão da sexualidade de Lilith soterrou também sua agressividade, sua criatividade e sua espiritualidade. As conseqüências da repressão da sexualidade de Lilith são entre outras a dissociação entre a maternidade e a sexualidade, o duplo padrão de moral e o controle da sexualidade masculina.

Tal dissociação criou a figura da esposa dissociada da imagem da mulher, o que significa que o homem ocidental não consegue identificar a esposa e a amante numa mesma mulher, recorrendo ao duplo padrão de moral para realizar seus desejos sexuais. O que se observa frequentemente é que ele matem a esposa em casa para lhe dar filhos e a amante para lhe dar prazer. Este padrão vem sendo quebrado pelas mulheres que não mais aceitam esta condição de mulher incompleta que as coloca numa condição humilhante perante Deus e o homem.

Tal como já fora explicitado anteriormente, durante a caça as bruxas na Idade Média, e mais recentemente no movimento de libertação da mulher, Lilith se fez presente: é a volta do reprimido com toda a sua força. Contudo, as mulheres que lutam pela igualdade da sua condição social perante os homens pagam um alto preço, que se traduz muitas vezes, no isolamento social e na solidão.

Em suma, é preciso destacar que as conquistas destas mulheres tem sido compensadoras. Posto que além de conquistar a igualdade jurídica e outros direitos sociais e econômicos, a convivência lado a lado com o homem, na vida cotidiana, tem servido para transformar e humanizar a própria condição masculina com um pouco da ternura produzida pelo sentimento e pela intuição que transbordam da alma feminina.

4. Reflexões Sobre os Movimentos de Integração do Feminino na Sociedade Ocidental

Antes de discorrer sobre a construção evolutiva dos papéis femininos, é importante que se compreenda como ocorrem as transformações responsáveis pelo abandono de antigas posições e a aceitação de novos papéis sociais. Numa retrospectiva histórica das diferenças de gênero, pode-se remeter às escrituras bíblicas, nas quais não há nenhum fundamento que justifique a atitude de domínio masculino. Na Bíblia Sagrada, Deus criou o homem e a mulher semelhantes um do outro e necessários para a felicidade e cooperação mútua.

Segundo Saffioti (1969), a mulher nunca foi alheia ao trabalho. Em todas as épocas e lugares ela tem contribuído para subsistência de sua família e para criar a riqueza social. Nas economias pré-capitalistas, especificamente no estágio anterior a revolução agrícola e industrial, a mulher das camadas trabalhadoras era ativa: trabalhava nos campos e nas manufaturas, nas minas e nas lojas, nos mercados e nas oficinas, tecia e fiava, fermentava as bebidas e realizava outras tarefas domésticas. Enquanto a família existiu como uma unidade de produção, as mulheres (e as crianças) desempenharam um papel econômico fundamental. Nesse período, a felicidade pessoal da mulher incluía necessariamente o casamento, pois era através dele que se consolidava sua posição social e se garantia sua estabilidade ou prosperidade econômica. Isso implicava ainda que a obediência da mulher ao marido era uma norma ditada pela tradição. Assim, a mulher cuja personalidade que mais se aproxima do tipo ideal formulado pela cultura ocidental, é aquela que encarna com dedicação seu papel de esposa e mãe de família. É aquela que reúne as condições para o amplo ajustamento à estrutura familiar e à sociedade como um todo. Em linhas gerais, o grau de integração da mulher na sociedade de classes varia em função do nível de adequação obtido entre os papéis ocupacionais e de seus papéis na família.

Sobre a construção das atribuições de papéis sociais, Reis (2000) afirma que mudanças de papéis frente à sociedade exigem disponibilidade interna individual e mecanismos externos facilitadores. Nenhuma das alterações vividas pela mulher perecem ter ocorrido por simples coincidência ou capricho. Houve tanto necessidades internas de suas representantes quanto uma demanda social que possibilitou o surgimento da mulher na sociedade. Porém, apesar da exigência social por sua inserção, o sentimento patriarcal impera e pode resultar em um desequilíbrio emocional interno, experimentado pela ausência de recursos pessoais necessários ao enfrentamento de novos desafios. Mesmo quando solicitada a participar ativamente, a mulher ainda sofre influência do peso de sua história. Apesar deste sentimento, não há mais nenhuma atribuição masculina que a mulher não possa exercer, e apenas a própria mulher detém um papel exclusivo: o da maternidade.

A busca feminina pela assunção de outros lugares no âmbito social é decorrente de novas formas de organização da sociedade, posto que novas formas de viver incitam novas habilidades a fim de permitir adaptação e desenvolvimento de seu meio. Já que o ser humano é o único animal capacitado a alterar, através do trabalho, o meio em que vive, ele é o único que não deve exigir cristalização na posição de seus iguais.

4. Considerações Finais

A partir da perspectiva de Carl Gustav Jung Os mitos foram considerados nesta pesquisa como verdades puramente psicológicas, isto é, estruturas fundantes da mentalidade humana. São arquétipos que servem para compreender o desenvolvimento do pensamento humano em sua totalidade. Não convém discutir se Lilith existiu, se foi um mito dos povos pré-bíblicos, ou não. Importa, aqui, considerar o mito como uma parábola para se compreender alguns comportamento femininos atuais. Neste sentido Lilith é atual e serve para compreender alguns aspectos do comportamento da mulher ocidental em sua luta pela reintegração na comunidade dos homens. O mito de Lilith não esgota em si mesmo tudo que se pode escrever sobre a mentalidade da mulher. Um estudo mais completo deverá incorporar as contribuições de Eva, Pandora e, mesmo Maria, na formação da mentalidade da mulher ocidental. Estes aspectos serão abordados em pesquisas posteriores.

Em termos da psicologia analítica, Lilith seria o lado obscuro e negativo da anima, ou seja, os aspectos femininos não integrados da psique humana. Em linhas gerais, isto quer dizer que ela representa o oposto das características que foram culturalmente atribuídas como obrigações femininas. Lilith representa, portanto, a rebeldia contra a passividade, à submissão e a obediência. O repúdio à tradição patriarcal de dominação do homem sobre a mulher; a luta pela igualdade de condições e direitos, e principalmente o desenvolvimento de ações seguras e assertivas diante de seus ideais.

Felizmente, Neotti (1973) coloca que está ocorrendo uma transformação na imagem tradicional e servil da mulher. A mulher, não é mais objeto de satisfação dos desejos do homem e símbolo da natureza bruta, mas sim, mediadora do próprio universo, sujeito, pessoa livre, consciente e responsável. Torna-se, portanto, tormento para o homem, questionando-o a cada momento de sua existência comum, no mais profundo do seu ser.Voltemos ao mito da criação segundo uma lenda Indu:

Depois de uma semana o homem voltou e disse:

Senhor, a criatura que me deste faz a minha vida infeliz. Ela fala sem cessar e atormenta-me de tal maneira que não tenho descanso. Ela insiste em que eu lhe dê atenção o dia inteiro e assim as minhas horas são desperdiçadas. Chora por qualquer motivo e leva uma vida ociosa. Vim devolvê-la por que não posso viver com ela’.

O Criador disse: ‘Está bem. E tomou-a de volta’.

Depois de uma semana, o homem voltou ao Criador e disse:

Senhor, minha vida é tão vazia desde que eu quero aquela criatura de volta! Eu sempre penso nela, em como ela dançava e cantava, como me olhava, como conversava comigo e depois se achegava a mim. Ela era agradável de se ver e de se acariciar! Eu gostava de ouvi-la rir. Por favor, dá-ma de volta.’

O Criador disse’ esta bem’. E a devolveu.

Mas três dias depois o homem voltou e disse:

Senhor, eu não sei – não posso explicar, mas depois de toda a minha experiência com esta criatura, cheguei a conclusão de ela me causa mais problemas do que prazer. Peço-te, toma-a de novo! Não posso viver com ela.’

O Criador respondeu:’Mas também não pode viver sem ela.’

E virou as costas ao homem e continuou o seu trabalho.

O homem, desesperado, disse:’ Como e que eu vou fazer? Não consigo viver com ela e não consigo viver sem ela.’( Trosbich, p. 7).

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